manuel carvalho
TEMPORADA DE PROJETOS 2019
EXPOSIÇÃO 2.4 - 9.6.2019
Em Sussurra para que eu escute, Manuel Carvalho expôs trabalhos da série Anacoluto que vem sendo desenvolvida desde 2014. A série explora as possibilidades de composição através da sobreposição de camadas de pintura e pressiona os limites e capacidade de acumulação de informações conceituais e formais no plano pictórico. Para a Temporada de Projetos, o artista exibiu obras inéditas que ainda tratam das mesmas referências já exploradas anteriormente, todas apropriadas do arquivo do Museu Mineiro: a fotografia de um escravo; a de uma criança segurando uma boneca; e uma pintura de São Francisco do mineiro barroco Manuel Ataíde.
SUSSURRA PARA QUE EU ESCUTE
Claudinei Roberto da Silva
Há 23 anos o programa “Temporada de Projetos do Paço das Artes" vem apoiando e identificando pesquisas que nos inteiram sobre o "estado da arte" no cenário contemporâneo brasileiro. A iniciativa é notável também pela sua longevidade, posto que, entre nós, realizações do tipo não tenham, infelizmente, a perenidade necessária ao seu amadurecimento. Portanto, a ação é, ainda agora, imprescindível a um Estado que, de maneira renitente e lamentável, nega à Cultura (e à Arte) seu papel central no desenvolvimento, inclusive econômico, da nação.
Durante mais de duas décadas, a “Temporada de Projetos do Paço das Artes" logrou estabelecer-se como uma incontornável referência entre artistas de todos os quadrantes do país, e de fora dele, fato também beneficiado pelo advento dos meios de comunicação eletrônicos, que tornam possível a difusão diligente e mais ou menos democrática de editais e convocatórias desse tipo, não sendo, portanto, de menor importância, a participação, nesta edição, do artista de Minas Gerais Manuel Carvalho.
Na descrição do seu processo de trabalho, Carvalho usa, com alguma frequência, a palavra "método", que o Dicionário Larousse da Língua Portuguesa (2004) descreve assim: “Método: s.m. (gr. methodos). 1. Ordenação de tarefas, procedimentos ou etapas para atingir uma meta, um fim. 2. Maneira de ensinar. Processo de ensino. 3. Maneira de agir. 4. Ordem, coordenação, organização. 5. Programa, processo, técnica. 6. Obra que reúne de maneira lógica os elementos de uma ciência, de uma arte etc".
A invenção e o método aplicados a suas pinturas têm, também, a virtude de desfechar dispositivos que nos conectem a outras histórias de arte, não imediata e superficialmente associadas a seu trabalho. Não é comum que referências aparentemente díspares se harmonizem em projetos que, como este, têm potencial de cogitar sobre os desdobramentos de nossa história da arte que, apesar de centenária, ainda se tem em questão.
As referências simultâneas e mais facilmente observadas na pintura de CarvaIho - como a Op Art, o Barroco e a pintura de gênero (retrato), por exemplo - seduzem nossa crítica a um discurso excessivamente adjetivado, quem sabe, perigosamente hermético, na sua loquacidade que, em certo sentido, contraria as intenções poéticas do artista que estão, implícita ou explicitamente, sugeridas já no título de sua mostra em São Paulo: Sussurra para que eu escute, título que nos informa sobre uma das condições da exigente relação estabelecida entre a obra e seu público, no silêncio íntimo e inestimável a quem procura responder às questões que essas obras colocam e que estão mais ou menos evidenciadas ou mais ou menos veladas pelas inúmeras camadas de tinta que, além de construir sedutores percursos visuais, nos advertem sobre a "espessura poética" dessas proposições gradativamente adensadas, a partir dessas ações.
Manuel Carvalho nasceu em 1981, na cidade de Lavras, no interior do estado de Minas Gerais, e vive e trabalha na capital Belo Horizonte. O estado não tem conexão com o litoral, e essa peculiaridade desafia a sensibilidade dos locais provocando, quem sabe, certa introspecção, que não contraria o cosmopolitismo de artistas como Carvalho, mas que, de alguma forma, aprofunda, vertical e não horizontalmente, uma sensibilidade confinada entre montanhas. Pintor de formação erudita (frequentou a Escola Guignard - UEMG), Carvalho tem sua pesquisa cotidianamente desenvolvida pela prática organizada no recesso de seu ateliê, fato tornado evidente pelo resultado observado na superfície de suas telas, superfície que se apresenta como um campo de experimentações que autenticam e confirmam a permanência da pintura enquanto linguagem. É possível que dados biográficos sejam, afinal, reveladores e mesmo inestimáveis à compreensão deste ou daquele determinado percurso artístico, sendo, por isso mesmo razoável imaginar uma historiografia de arte que considere uma investigação a partir desse lugar "externo" à obra. Teríamos, então, uma "sociologia da produção artística", predominante sobre considerações exclusivamente formais e "internas" ao objeto de arte considerado; a biografia do artista na abordagem sociológica emprestaria sentido à obra. Mas, para além desse argumento, em cenários como o nosso, tão marcados por processos colonizadores predatórios, sazonalmente afloram as polêmicas em torno da questão do "nacional nas artes", sobre o que seriam as notas e características "autênticas" e originais de uma produção circunscrita a uma cultura específica e geograficamente demarcada.
Talvez seja interessante assinalar que as pinturas apresentadas na mostra Sussurra para que eu escute repercutem e elaboram essas questões, na medida em que tecem comentários sobre a “pintura de gênero" (o retrato, aqui reinventado) e o barroco brasileiro; mestre Manuel Ataíde é evocado numa delas, mas, dada a engenhosidade dos padrões ali revelados, as obras transcendem esse e outros debates. De fato, nas narrativas construídas por Carvalho, o signo visível, possível de ser interpretado e lido como tal (retrato, imagem, sinal), está mesclado a outros, digamos, “não signos", numa trama expressa na pura materialidade da tinta organizada em sobreposições de cores (em geral, brilhantes, que atuam umas sobre as outras) e composições, opção que, em certo sentido, torna obsoleta - ou pelo menos complexifica - a dicotômica relação "figuração/abstração" e problematiza a correlação de figura-fundo e ilusão de perspectiva. Novas significações são, então, prospectadas a partir daí, e, nesse processo, a escala da pintura não vai, necessariamente, reportar-se ao seu tamanho ou à monumentalidade nela percebida, imanente ou objetivamente; não está vinculada ao seu tamanho, mas à sensação dele, pois o espaço imersivo que ela sugere acontece na nossa retina, através de um jogo ótico, quase cinético, que é próprio da tessitura gráfica que essa pintura oferece. A obra de Carvalho merece a atenção dispensada a ela, se mais não fosse, pelo tanto que nos informa sobre a vitalidade, inclusive política, dessa linguagem: a pintura.