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O Brinquedo

 

 

“As crianças, como personagens das fábulas, sabem perfeitamente que, para 

 

serem felizes, precisam conquistar o apoio do gênio da garrafa (...) conhecer o 

 

lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçar-se honestamente para atingir 

 

um objetivo”. (Giorgio Agamben)

 

 

Conhecer o lugar e a fórmula, esta reflexão se torna pregnância ao entramos em contato com os trabalhos propostos por Gustavo Maia e Manuel Carvalho para a 

 

exposição na galeria Carminha Macedo. São pinturas, as proposições, e são lugares que manipulam fórmulas da história da arte e do mundo em que 

 

vivemos. Três séries compõem a exposição: pop-up, encontros legendados e kit. A partir dos próprios títulos percebemos a relação dos trabalhos com a imagem 

 

infográfica. Ao mesmo tempo, “encontro” significa relação entre pessoas, afetividade, afinidades. Criam-se, assim, duas abordagens distintas que revelam 

 

as particularidades de cada um dos artistas. Em kit, os dois pintores criam em parceria.

 

 

A pintura, na longa trajetória percorrida na arte, ganhara distintas características imagéticas e conceituais. Servira como janela, dominação do mundo, espantara 

 

os demônios, mostrara os hábitos e costumes civilizatórios, adquirira autonomia e planaridade, inventando formas como equações matemáticas. Paralelo a isso, o 

 

mundo tratava a imagem em recursos técnicos e tecnológicos. A fotografia revelava exposições luminosas que queimavam superfícies sensíveis. A tinta à 

 

óleo industrializada possibilitava a mobilidade de cavaletes e pintores. A imagem digital transformava a aparência das coisas em números binários, decretando, de 

 

vez, a perda de uma consistência, de uma materialidade. T. J. Clark ressalta, na pintura de Cézanne, justamente a citada materialidade. A 

 

imagem servia como mero deflagrador de atitudes insistentes, violentas, até, diante de uma outra materialidade, a do suporte. Pintar a maçã é pintar pintura. 

 

Nas pinturas de Gustavo Maia e Manuel Carvalho temos o caráter espectral destas relações históricas. Gustavo Maia, na série Pop-up, parte de imagens 

 

retiradas de variados meios: internet, fotografias impressas, poesia concreta, silhueta de coisas vulgares. São “formas de descrever o mundo”, afirma o 

 

artista. “Eu acrescentei a esse léxico o uso de fotografias apropriadas que eu transfiro para tela(...)”. Maia assume sua influência da pop arte. E hoje, ao 

 

tratarmos da pletora de imagens advindas de distintos meios, eu perguntaria, como fugir da pop arte? De fato, a busca por indistintas fontes, misturando 

 

erudito e popular, alta e baixa culturas só podia ter na pop um vínculo de referência.

 

 

Mas a pintura tentara a concretude da forma, buscando a planaridade objectual, a qual Greenberg se dedicou conceitualmente. O que fazer com uma imagem cuja 

 

concretude é o vazio, como as que saltam do fundo sem fundo das telas do computador? Pop-ups são, justamente, as telas aleatórias que vêm a tona sem 

 

que controlemos ou desejemos seus acessos. Esta aleatoriedade está, sem dúvida, ambígua, pois os assuntos, os anúncios, as ofertas de felicidade são 

 

sintomas do mundo capitalista. Um mundo cuja crise conhecemos.

 

 

Manuel Carvalho busca, em Encontros aleatórios, uma mesma conceituação das Pop-ups de Gustavo Maia, as imagens incertas, o que é fortuito. Assim, vemos 

 

senhoras agasalhadas, mulheres sentadas escrevendo, outra que ajeita o sapato, um homem acendendo um cigarro, a mãe que faz menção de segurar o filho no 

 

colo. Sensações, mímicas, sentimentos corriqueiros. Carvalho afirma: “apesar do trabalho ser feito à partir de fotografias, tento imprimir minhas memórias dos 

 

objetos, trajes e pele construindo uma pintura que mistura os aspectos fotográficos com observação direta das coisas”. Como na série Still, em que a 

 

fotógrafa Cindy Sherman se autorretrata como personagens já conhecidos - porém nunca identificados - na história da literatura, do cinema, da telenovela, 

 

os Encontros de Manuel Carvalho criam uma identificação com poses que vemos cotidianamente. Ainda assim, mesmo já reconhecendo tais atitudes, não sabemos 

 

os motivos, as finalidades. Com todo detalhamento figurativo, a pintura, neste caso, ativa o aleatório, o abstrato.

 

 

Sobre as pinturas de Robert Ryman, o teórico Arthur Danto ressalta a busca do vazio, a partir de superfícies monocromáticas, como se tornou recorrente no 

 

expressionismo abstrato de Barnett Newman, por exemplo. Toma-se, assim, uma posição diferente das poéticas de impressões gráficas da pop de Rauschenberg. 

 

Porém, diferente da busca pelo absoluto, Ryman cria num “espírito muito mais livre”, afirma Danto, podendo reduzir a presença de imagens sem ser “severo”. 

 

Na série Kit, Gustavo Maia e Manuel Carvalho se encontram. E a pintura está dividida em dois, apresentando um conjunto de peças de montagem. Reduz-se a 

 

presença da imagem, como em Robert Ryman, em uma das partes, e na outra, assume-se a imagem banal do brinquedo, como na estratégia da pop. Assim, uma 

 

das metades da pintura é completa em sua figuração, são brinquedos, aviões de guerra, helicópteros. Na outra metade, um esquema, assumindo a parte do kit 

 

que ficou vazia depois que o brinquedo fora montado. Temos, então, uma junção de estratégias pictóricas. No monocromo, os reduzidos tons de branco ativam o 

 

vazio. Na pop, o excesso de detalhamento, de camuflagem, revela o mundo retiniano. E em tudo paira a presença do brinquedo.

 

 

Depois de a história decretar tantos epílogos para pintura, de artistas e críticos acreditarem na presença do fim da representação, por que fazer pintura hoje? 

 

Nas poéticas apresentadas, vemos a pintura ser tratada com muita liberdade e ludicidade, como um brinquedo. Aqui ativa-se uma coragem de fazer mais uma 

 

vez, repetindo uma instancia de arte que teve seu fim decretado. “A essência do brincar”, afirma Walter Benjamin, “não é um fazer como se, mas um fazer sempre 

 

de novo”.

 

A pintura continuada, de longa duração parece deixar o artista imerso nos modos e mecanismos, no lugar e na fórmula que sempre discutirão a arte e o mundo. Os 

 

brinquedos de madeira, ressalta Roland Barthes, deixam “a criança permanecer numa continuidade com a árvore”. Com a presença da arte como decifração e 

 

proposição sobre o real e seus objetos, percebemos que a pintura tem a louvável característica de continuar acreditando na existência da arte, ainda que as 

 

imagens, hoje, sejam feitas da mesma materialidade de um fantasma.

 

                                                                                                                                                                                                                                                                     

                                                                                                                                                                                                                                                            Marcelo Campos

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